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18 de Abril de 2024

Equidade racial

Porque é tão difícil ao brasileiro mediano e branco entender que não existe igualdade enquanto não houver equidade racial?

Publicado por Chris Dionízio
há 6 anos

Me deparei com uma postagem na rede social Instagram onde pessoas de diversos setores, profissões e raças discutiam a respeito das Cotas raciais para as funções de estagiário da justiça. Informo que sou defensora assídua dos direitos as cotas raciais e sociais sim, sou a favor de políticas afirmativas que visem a inserção das pessoas socioeconômicas mais afetadas e vulneráveis por conta de um regime escravocrata imposto pelo estado aos seus ancestrais e que lhes atinge até data atual.

Gostaria antes de tudo relembrá-los que a escravidão privou o negro e o indígena por mais de 350 anos. Muitos foram retirados de suas terras e trazidos ao Brasil e vendidos como objetos. Em alguns estudos que fiz, diziam que escravo sequer tinha alma e a eles era impedido até de entrar nas igrejas. O comércio escravo se deu através do Estado e assim se manteve por anos, em 1888 finalmente o governo criminalizou a escravidão por meio da abolição mas, frise-se bem, o ESTADO nunca deu condição ao ex escravo de se manter ou se quer poder reconstruir sua vida. E foi isso que fez com que os negros ficassem anos atras dos brancos em relação a estudos, a oportunidades e todas as vantagens de ser tratado como pessoa humana. Portanto, quase um século e meio depois, o governo lança as cotas raciais como uma forma de poder compensar e retratar os negros pelos anos que estiveram construindo esse Brasil que estava e está sendo usado por uma maioria branca absoluta. Não sei como as pessoas, as que estudam e se dizem cultas, não conseguem ver aqui que a herança escravocrata massacra até hoje. O que percebo é negro que ainda precisa ficar se justificando e se desculpando por ocupar os lugares e poder finalmente sonhar. E no meio desse turbilhão muitos ainda dizem que nós, que nascemos anos após a abolição, não podemos nos "vitimar" alegando que sofremos ainda hoje o reflexo da escravidão sofrida pelos meus antepassados. Como é que uma pessoa, que vive no Brasil pode achar que a escravidão social já acabou?

Vejo constantemente pessoas utilizando termos pejorativos ao se referir ao negro. Pessoas negras não podem se dar o luxo de sair de casa sem seus documentos e de não ser confundido com bandidos. Sim, na teoria pós escravistas "nem todo bandido é preto mas todo preto é bandido em potencial" e por isso, policiais e pessoas despreparadas e preconceituosas, preferem primeiro matar a perguntar ou pedir a identificação de um rapaz simplesmente por conta da cor da sua pele. Mas não vou tecer comentários a respeito da segurança pública e nas políticas pró-racistas que ainda existem. Vou citar algumas coisas ditas por todos os grandes "pensadores contemporâneos" (qualquer um que tenha acesso ao google) ao discordarem das cotas, como uma forma de justificar seu racismo disfarçado por um discurso de que seja feita a lei proposta pela Constituição:

  • "Não concordamos com a cota racial pois a CF/88 nos diz que todos somos iguais perante a lei e devemos ser tratado como iguais";
  • "que são contra cotas raciais pois existe o Lázaro Ramos, a Thais Araújo e o ex-ministro Joaquim Barbosa como exemplos de que o negro pode conquistar seus espaços";
  • "que quem defende as cotas raciais é o pior dos racistas pois semeia a segregação por cor";
  • "que a população jovem negra nem viveu a escravidão para dizer que foi afetada por ela"... entre tantas outras "justificativas e ofensas" que lançam ao querer argumentar.

E alguns batem no peito dizendo que conseguiram seus feitos por esforço próprio. PRÓPRIO? Mas como? Tudo no Brasil foi construído e lapidado em cima da escravidão. O Brasil foi construído com o suor e sangue de escravos. São 518 anos de descobrimento, sendo que 388 anos foram de regime escravocrata. Somem, é só somar. As pessoas acreditam mesmo que a construção do Brasil foi por mãos portuguesas e espanholas? Não querer aceitar esse dado é ser insano e não querer perceber o quanto o negro foi reprimido, ofendido, segregado, morto, violado, compelido, desmerecido e lhe tirado toda a dignidade dentro de um país onde o próprio governo acreditava que aquelas pessoas negras eram peças e objetos e não pessoas humanas é ao menos pensar somente nos seus próprios privilégios.

Então me diga como 130 anos podem colocar o NEGRO em pé de IGUALDADE com os BRANCOS? Façam os cálculos. Me diga como tirar da cultura do negro que ele não nasceu somente pra servir e que ele pode aspirar sonhos e projetos maiores que ser mucamo? Não tem como arrotar o artigo da CF/88 como justificativa pra não ser imposto e obrigatório as cotas raciais. Só pra lembrá-los o artigo diz o seguinte:

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Esse principio eu acho lindo e perfeito, como ele é de fato. Mas espera um pouquinho, a Constituição Federal não para ai não, existem muitos outros artigos que podemos também usar. Se a pessoa se interessar mesmo ela poderá seguir mais adiante até o artigo 194, p.u, V que diz:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
V - eqüidade na forma de participação no custeio;

Olha ai caro amigo leitor, a EQUIDADE aparece na Constituição sim, e aparece como medida de GARANTIR A SEGURIDADE SOCIAL. Você não compreende o que é seguridade social?? Eu explico: é um conjunto de políticas sociais cujo o objetivo é amparar e assistir cidadãos e famílias garantindo os direitos relativos à saúde, à previdência e à ASSISTÊNCIA SOCIAL. Amigo, é uma garantia constitucional de que a equidade deva vir para poder colocar as pessoas em pé de igualdade.

Mas você ainda não compreende o que é EQUIDADE? Eu te explico usando uma velha imagem:

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A grossos modos deixa eu explicar, quando se quer dar direitos iguais a lei não dá o que a pessoa precisa mas o que acha que seja correto, ou seja trata todos como IGUAIS. Imagine as pessoas que querem assistir um jogo por cima de um muro, cada um com sua altura, ao se dar o MESMO caixote pra cada um assistir o jogo você está dando o direito igual de cada um ter um caixote porém essa igualdade não é percebida e ela não repara a desigualdade de altura. O menor ainda não alcança o alto do muro pra poder ver o jogo como os outros dois já conseguem. Aristóteles em sua obra denominada Ética a Nicômaco fala justamente disso, que a Lei é universal, e por ser geral pode não ser a correta em casos isolados. Quando se observa a imagem acima fica evidente a DESIGUALDADE entre as partes, e é ela quem deve ser corrigida, e não tem como corrigir tratando as três pessoas como iguais, tem que tratar desigualmente o mais desigual. E foi Aristóteles que disse que a isso, deve-se haver tratamento desigual. Ou seja, tem que haver mecanismo que coloque aquele individuo menos favorecido em pé de igualdade com o mais favorecido. Tem que haver uma forma diferenciada de abordagem sim. A equidade vem antes da igualdade, apesar da igualdade vir antes na CF/88, pois a equidade vem trazer uma correção da justiça quando a mesma é ineficaz porque é generalizada. Isso não quer dizer que não concorde com a igualdade, claro que concordo, mas aos IGUAIS como IGUAIS, isso é simples de entender.

Não tem como dizer que negros e brancos são iguais no Brasil, a lei pode dizer isso mas não garante nada. Como citado, jovens brancos e jovens negros recebem tratamentos diferenciados em todos os âmbitos da vida. As pessoas que defendem que não são racistas geralmente citam que tem um amigo negro, ou são casados com um negro, ou tem um parente negro como forma de afirmar que isso o torna menos racista mas, na hora de falar de uma retratação real, como são as cotas, cada um olha para seu próprio umbigo e defendem seu interesse próprio.

A escravidão propriamente dita acabou porém o racismo não. Ou as pessoas aprendem a lidar com isso ou estão enfadadas a protegerem somente seus interesses e privilégios. As cotas geram justamente essa parcela de reparação para que as diferenças sejam diminuídas. E pessoas, as COTAS não são vitalícias, elas existirão até que a desigualdade diminua. A escravidão tirou do negro o direito de evoluir junto com a sociedade, o mundo foi mudando, melhorando e o negro cada vez mais domesticado como um bicho, criado para não pensar e somente servir. E muitos viveram assim, mesmo depois da escravidão, condicionados pois só sabiam ser escravos. Foi um povo subjugado, lhe foi arrancado os seus direitos enquanto a sociedade evoluía e os brancos ocupavam seus lugares e suas posições. Para um negro escravo o mais alto sonho era ser um escravo da casa grande, acreditavam inclusive que faziam parte da família. Muitos romances narram como a sinhá tratava tão bem suas mucamas e seus ladinos. Para essas pessoas, naquela época, a maior vitória era essa. Vai precisar de muitos anos de cotas para tentar colocar o negro par a par com os brancos. Qualquer pensamento diferente disso é utopia. Racismo e preconceito estão impregnados na essência humana de querer sempre ser servido. Citar personagens midiáticos como referências de superação negra é mera má fé. Como citar 3 pessoas como representatividade de sucesso para uma população de 205,5 milhões, onde 54% dessa conta são NEGROS ou pardos. Não tem algo errado nessa conta?

Citem pelo menos 30 atores negros com papéis de protagonistas, ou 10 ministros negros, 10 grandes diretores de empresas grandes do Brasil... um país miscigenado como o Brasil é governado por 80% de brancos. Como que isso é senso igualitário? Cade a equidade? Retiraram dos negros seus direitos e hoje, temos direitos de falar e exigir sim que nos devolvam tudo o que nos tiraram. As pessoas precisam entender que o racismo não é só a agressão ou injurias que sofremos diretamente mas aquele mascarado, aquele racismo institucional que quer a todo custo acabar com a mobilidade social e os acessos a cidadania pelos que mais tiveram seus direitos suprimidos. No site Carta Capital, Djamila Ribeiro, pesquisadora de filosofia política e feminista disse:

Se o Estado brasileiro racista priva a população negra dessas oportunidades é dever desse mesmo Estado construir mecanismos para mudar isso. O movimento negro sempre reivindicou cotas juntamente com a melhoria do ensino de base. Só que, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demoraria por volta de 50 anos para que a educação de base fosse de qualidade. Quantas mais gerações condenaríamos sem as cotas?

E ela completa afirmando que:

Cotas e investimento no ensino de base não são tópicos excludentes, ao contrário, devem acontecer concomitantemente. Cotas não são pensão da previdência, são medidas emergenciais temporárias que devem existir até as distâncias diminuírem.

E eu concordo com ela, pra mim, ser contra esse mecanismo usado para diminuir as desigualdades criadas pela escravidão e pelo racismo que se mantem presente até hoje, é propagá-lo por mais anos ainda. E quem defende esta postura é RACISTA sim.

O BRASIL tem uma divida social, história e humana aos povos negros, e como a pesquisadora mesmo disse em seu artigo: "ou se lida com isso ou se repensa e questiona os próprios privilégios. Fazer-se de vitima é reclamar de exclusões que nunca passou".

E reafirmo: em relação as pessoas brancas pobres, existem cotas para quem é oriundo de escolas públicas e de baixa renda, essa é outra modalidade de cota. Mas as raciais são importantes sim e necessárias também, porque pessoas brancas, por mais miseráveis que sejam, tem maiores possibilidades de mobilidade social uma vez que nunca sequer vão enfrentar o racismo.

E a você que ainda não acredita que o povo negro é deixado de lado no contexto de mobilidade social, a Princesa Isabel, em carta, que encontra-se no museu imperial em Petrópolis, desenha uma forma de indenizar ex-escravos para que pudessem subsistir. Com uma carta endereçada ao Sr. Visconde de Santa Victória a princesa "sonhava" com o projeto de indenização, que se segue trecho:

Com os fundos doados pelo Senhor teremos oportunidade de colocar estes ex-escravos, agora livres, em terras suas próprias trabalhando na agricultura e na pecuária e delas tirando seus próprios proventos. Fiquei mais sentida ao saber por papai que esta doação significou mais de 2/3 da venda dos seus bens, o que demonstra o amor devotado do Senhor pelo Brasil. Deus proteja o Senhor e todo a sua família para sempre!

Porém, os escravocratas e republicanos venceram através de golpes, tiraram o poder da família imperial, estabeleceram uma república ilegítima e os negros, que haviam sido libertos foram deixados a deriva e a sua própria sorte. A monarquia fora extirpada um ano depois. Esses ex-escravos, que não sabiam ser outra coisa, fundaram as favelas, alguns fugiram pedindo ajuda aos quilombos, tantos se marginalizaram e outros continuaram cativos e esse sentimento acompanha e torna a população negra ainda hoje vulneráveis sócio e economicamente. Defendo sim as cotas, exijo sim uma reparação, invoco sim a equidade e respeito que infelizmente, devido a cultura de que manda quem pode e obedece quem tem juízo, minhas singelas palavras serão recebidas por alguns com entusiasmo e para tantos outros como um insulto, como se as cotas fossem esmolas que nos fornecem a força. Porém, pior que ensinar um cachorro a não urinar em um poste na rua é querer ensinar o poste a urinar no cachorro. E tentar convencer pessoas com espírito escravocrata é querer mesmo conseguir o impossível. E como Martin Luther King disse:

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

Porque:

No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos.

E como Nelson Mandela reconheço que:

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

Por um país onde as cotas não mas existam pois todos realmente seremos iguais, não perante a lei, mas perante a condição humana de ser. Sem mais.

  • Sobre o autorBacharel e Entusiasta e eterna estudante de Direito
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